Quando se trata de pioneirismo, Rachel de Queiroz deve ser lembrada como uma das mais relevantes figuras do universo literário brasileiro. Em uma época de rejeição à produção intelectual e criativa oriunda de uma mulher – no seu caso, para agravar, uma mulher do Nordeste –, ela trouxe novas perspectivas sociais, de gênero e abriu portas para que outras pudessem seguir seus passos. Foi uma das primeiras mulheres cronistas, a única aceita no movimento modernista brasileiro e a primeira a ocupar uma cadeira da Academia Brasileira de Letras. Sua história de vida é tão rica quanto seus romances, notoriamente inspirados nas experiências particulares de uma combativa mulher sertaneja.

Rachel nasceu em novembro de 1910, em Fortaleza, capital cearense. Sua infância aconteceu em um vaivém entre o campo e a cidade, na fazenda do Junco e Quixadá, brincando no açude, andando a cavalo e, aos poucos, introduzindo-se na literatura. Violentas secas acometeram o Ceará em 1915 e trouxeram complicações para a família de Rachel, que acabou por sair do estado para morar no Rio de Janeiro, brevemente, e em Belém, por dois anos. De volta a Fortaleza, inscreveu-se no Colégio da Imaculada Conceição, internato de freiras para meninas, onde se formou em 1925.

A adolescência e o começo da vida adulta foram marcados por experiências e incursões em diferentes gêneros literários. Começou escrevendo contos de terror, elaborou um romance em folhetins e, mais tarde, uma peça de teatro, além de ter experimentado com poesia.

Como poucos escritores fizeram antes, Rachel estreou no universo literário em definitivo com o que se tornou seu principal romance – e apenas aos dezenove anos de idade. O Quinze (1930) foi escrito durante o enfrentamento de uma séria doença pulmonar e inspirado na seca vivida anos antes. O romance foi recebido como uma surpreendente revelação no meio literário carioca e paulista. Rachel combinou o modernismo emergente e inovador de São Paulo e sua linguagem objetiva com a tradição e experiências nordestinas – as lutas contra a seca e a miséria –, algo inédito até então. Era, ainda, um livro escrito por uma mulher, explorando temas de relevância e preocupação social e a autonomia e liberdade feminina. Muitas pessoas, inclusive, chegaram a acreditar que o romance fora escrito sob pseudônimo – comprovação da fragilidade da situação da mulher nos anos 1930 no Brasil.

Rachel, no entanto, não era um caso comum. Após a publicação de O Quinze, tornou-se sensação do meio literário, passou a frequentar círculos intelectuais e a criar laços com integrantes do partido comunista cearense.

Em 1932, Rachel publicou seu segundo romance: João Miguel, que narra a história de um operário preso por matar um colega e sua vida na prisão, abordando temas como a violência e o isolamento, sem esquecer, ao mesmo tempo, a consciência social característica do primeiro livro. Ao apresentar seu trabalho para o partido comunista, recebeu críticas e pedidos de mudanças no enredo – que o operário fosse morto pelo patrão, para condizer com a ideologia política do grupo. A “contundente sugestão” não agradou à escritora, que deixou o partido e publicou João Miguel sem nenhuma alteração.

No período que se sucedeu à publicação, Rachel e José Auto, seu marido, foram morar na Bahia. Em 1933, nasceu Clotilde, filha do casal. Seguiu-se, então, um período de grande itinerância, com passagens pelo Rio, São Paulo, a volta ao Ceará e, por fim, Maceió, onde fervilhava um círculo literário de peso, formado por escritores como Graciliano Ramos, Aurélio Buarque de Holanda e José Lins do Rego – importantes nomes do modernismo no Brasil. Na capital alagoana, Rachel viveu breves momentos de felicidade, até que dois trágicos eventos mudaram sua vida.

Em 1935, a forte opressão conduzida pelo governo de Getúlio Vargas levou à prisão de Rachel, em regime incomunicável. Encarcerada, escreveu seu terceiro romance, Caminho de pedras (1937), no qual se reposiciona em relação ao partido comunista. Assim como seus dois trabalhos anteriores, a obra foi apreendida pelo governo.

Dois anos depois, Rachel publicou As três Marias. Pela primeira vez, Rachel arriscava-se na narrativa em primeira pessoa e em relatos autobiográficos – em especial, suas experiências no internato de freiras. No mesmo ano da publicação do livro, Rachel separou-se de José Auto e mudou completamente de vida: foi para o Rio de Janeiro e só viria a escrever outro romance 36 anos depois.

Durante esse período, recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra, realizou diversas traduções, escreveu duas peças de teatro, literatura infanto-juvenil e envolveu-se novamente com política, tomando posições controversas: recusou o convite para ser ministra da educação do governo de Jânio Quadros, participou da deposição de João Goulart, fez parte do diretório da Arena, foi delegada do Brasil na ONU e integrou Conselho Federal de Cultura.

O ano de 1975 marcou, enfim, o retorno de Rachel ao romance. Dôra, Doralina, escrito em uma época completamente diferente, mantém a força dos perfis femininos e as desilusões amorosas. Dois anos depois, Rachel foi eleita a primeira mulher da Academia Brasileira de Letras. O dia de sua posse, 4 de novembro de 1977, foi marcado pela grande festa que se organizou nas ruas próximas à cerimônia: Escola de Samba Portela e a torcida do Vasco da Gama lideraram a comemoração pelo feito de Rachel. Em 1993, nova conquista pioneira: o Prêmio Camões, que visa a consagrar um autor que, pelo conjunto de sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da língua portuguesa. O último romance que publicou é Memorial de Maria Moura (1992), finalizando o ciclo narrativo sobre mulheres fortes e independentes.

Rachel faleceu no dia 4 de novembro de 2003, a poucos dias de completar 93 anos e exatos 26 depois de sua posse na ABL. A cerimônia que em 1977 a imortalizara não foi, necessariamente, a maior representação de seus méritos, mas não deixa de ser um símbolo dos questionamentos que levou consigo enquanto escritora, mulher e sertaneja: “A vitória da minha candidatura representou a quebra de um tabu. Neste sentido me senti satisfeita, porque vivi a vida inteira na luta contra os formalismos, as convenções, os tabus e os preconceitos".

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Foto: Foto: Juarez Cavalcante/Folhapress
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